2019 - Rocambole | Curators Fernanda Brenner, Luís da Silva, João Mourão | Kunsthalle Lissabon - Lisboa (PRT)


Rocambole em Portugal é torta enrolada 

Os artistas Flora Rebollo, Thiago Barbalho e Yuli Yamagata estão além-mar, viajaram com seus trabalhos para a Kunsthalle Lissabon, onde abrem as malas fechadas em seu estúdio compartilhado no edifício Copan, em São Paulo. Além das malas e trabalhos mais ou menos prontos, os três artistas levaram consigo o Pivô, sua equipe e seu jeito de fazer as coisas. 

A amizade entre os artistas informa esse projeto, e a amizade entre as duas instituições levou à realização da segunda exposição do grupo, carregada tanto de afeto quanto de dúvida. O que vai acontecer quando abrirmos as malas nesse novo ambiente? Será que o rocambole viaja bem? O que mudou da primeira para a segunda versão da exposição?

Ao me perguntar isso, lembro de uma história famosa do galerista Marcantônio Vilaça (morto em 2000, ele foi um agente emblemático da cena de arte paulista e um dos grandes responsáveis pela expansão da circulação internacional da arte contemporânea brasileira) que levava sempre um delicioso “bolo de rolo”, feito por sua mãe no Recife, nas suas incansáveis viagens internacionais. O doce caseiro era como uma espécie de cartão de visitas, que seduzia os interlocutores do galerista pelo paladar e funcionava como ponto de partida para conversas que, consequentemente, abririam portas para a arte brasileira. 

A Kunsthalle Lissabon é uma instituição que advogada pela “hospitalidade radical”. Além da condução de seu excelente programa de exposições, João Mourão e Luis Silva são conhecidos por proporcionar a seus convidados passeios inesquecíveis pelos bares e restaurantes de Lisboa. Mais ou menos 32 horas depois de me despedir de Yuli Yamagata e Thiago Barbalho no Pivô, recebo por WhatsApp uma imagem de um prato de comida ao lado de um emoji sorridente. Os curadores da KL, assim como Vilaça, entendem o valor do encontro e do compartilhamento de experiências como combustível fundamental da produção artística e de sua difusão. E o projeto Rocambole foi concebido a partir dessa premissa. 

Logo, quando o Pivô foi convidado a ocupar, temporariamente, a Kunsthalle Lissabon, imediatamente pensei em propor a itinerância desse projeto que, a meu ver, traduz muito bem a confluência entre as metodologias de trabalho e o pensamento curatorial e institucional dos dois espaços. Os três artistas de Rocambole se conheceram no contexto do programa de residências do Pivô, o Pivô Pesquisa, em 2017, quando perceberam, pelo convívio, uma série de afinidades formais e conceituais entre seus trabalhos, o que os levaria a criar um projeto de exposição conjunto, acompanhado pela equipe de curadoria do Pivô e realizado em seu espaço expositivo, em 2018. Ao todo, são mais de dois anos de trabalho em que muita coisa aconteceu, tanto nas práticas individuais de cada um, quanto no Pivô e no Brasil. No entanto, a receita segue sendo, praticamente, a mesma: trabalhos novos de cada um deles, unidos pela predileção dos três pelas misturas irreverentes de cores e texturas, por anamorfoses e formas sinuosas e, sobretudo, por um fazer obstinado. A interação das obras é por proximidade, em vários casos os encontros no espaço são harmônicos e, em outros, mais estridentes. Na primeira versão, os artistas conheciam o espaço intimamente e fizeram vários dos trabalhos no próprio ambiente da exposição. Na segunda, os trabalhos foram pensados à distância para ocupar uma sala desconhecida, em outro país. Durante alguns meses, uma maquete física da KL ocupou o  estúdio dos artistas no Pivô. Ali, os artistas ensaiaram a nova ocupação, em que lidariam com ângulos retos em vez de curvas modernistas.  

No segundo volume da publicação Performing the Institution(al) , João Mourão e Luis Silva citam uma frase da personagem Tess McGill, do filme Working Girl, de Mike Nichols (1988) : “Se queres ser levada a sério, tens de ter cabelo a sério” ao se referirem ao “embuste institucional” que se propuseram a levar adiante nos últimos dez anos. Mais ou menos à revelia – e, totalmente, por conta do envolvimento vertical de seus criadores e colaboradores –, a KL veio a ser uma relevante instituição no mundo real. Yuli Yamagata uma vez me disse angustiada : “As pessoas acham que eu estou fazendo piada, mas eu estou falando muito sério”, enquanto enrolava uma enorme minhoca de tecido calçada com um tênis com cara de cachorro. 

O que têm em comum a ética de trabalho da Kunsthalle Lissabon, a exposição Rocambole e o bolo de rolo de Marcantônio Vilaça? A valorização incondicional e a consciência política do gesto de “puxar assunto”, além da crença de que arte é assunto muito sério (o que não significa sisudez). O galerista pernambucano contava que, nos anos 1990, ofereceu a iguaria à Barbara Gladstone em um avião, junto com um cartão impresso com uma pintura da então desconhecida Beatriz Milhazes (parece que ela amou o rocambole e odiou a pintura). Entre discussões complexas e generosas porções de amêijoas, a instituição portuguesa realizou projetos singulares com vários dos mais interessantes jovens artistas contemporâneos e para nós, do Pivô, é uma honra habitar temporariamente esse espaço – e essa história –, levando pela primeira vez a Portugal três artistas brasileiros em quem acreditamos muito e com um projeto tão especial, que começou a partir de conversas informais nos ateliês e espaços comuns do Pivô. 

Sempre me perguntam se o Pivô existiria fora do Copan e eu hesito em responder.  Agradeço imensamente à Kunsthalle Lissabon por nos oferecer a oportunidade de testar essa possibilidade.

Fernanda Brenner